Bem-vindo ao meu blog

Aqui eu compartilho minhas reflexôes, discussões e, principalmente algumas histórias fictícias. Aproveite a leitura e espero que cada palavra possa servir de inspiração para pelo menos alguns...mas lembre-se de que NADA substitui a leitura de um bom livro...

 

Beijos!!

 

 

O Caso da Moça jovem

"Tornai-me a aparecer, entes imaginários,
que me enchíeis outrora os olhos visionários!
Poder-vos-ei fixar?... Tenho inda coração
capaz de se render à vossa sedução?...
Chegam... que densa turba! Envolve-me... Não posso
furtar-me ao seu triunfo. Eis-me, Visões, sou vosso.
Vai-se-me em névoa o mundo. Emanações subtis
que exalais, vem tornar-me aos anos juvenis.
Que imagens que trazeis de dias tão risonhos!..."

 

 
                                                - Goethe, Fausto
 
     Era uma noite chuvosa. A Dra. Sarah Oliveira se encontrava sentada em sua poltrona, segurando seu bloco de notas juntamante com sua caneta, aguardando seu primeiro paciente do dia. A ficha dela se encontrava em cima de sua mesa, contendo seus dados, mas ela sempre preferia ouvir o que seus pacientes tinham a dizer do que apenas ler um papel.

 

     Ela ouviu uma leve batida na porta. Uma mulher, jovem, alta, bonita e com aparência bem-comportada entrou. Suas roupas estavam um pouco molhadas, assim como os seus sapatos. Ela segurava seu guarda-chuva colorido com cuidado, porque ele sim estava todo encharcado.

- Bom dia! - Ela falou, olhando para o guarda-chuva, com medo de que ele molhasse muito o chão da doutora. - Desculpe, acabei pegando essa chuva - sorriu um pouco desconcertada.

     Sarah olhou para a paciente. Seu sorriso era cativante, seu olhar chegava a ser infantil. Ela parecia até mesmo ser de menor. Ela se perguntava que tipo de problemas uma mulher assim poderia ter.

- Não se preocupe - pegou o guarda-chuva dela - eu vou abri-lo aqui no canto e ele seca rapidinho - sorriu também. Abriu o guarda-chuva e voltou a sentar-se. 

- Então, podemos começar? - pegou seu bloco de notas e a caneta - Pode começar por se apresentar.

A moça assentiu.

- Tudo bem - Meu nome é Kelly Smith, sou de descendência americana e acabo de chegar de uma viagem que eu fiz pela Europa.

- Hum... que interessante - comentou Sarah - E como foi de viagem?

Kelly sorriu, com os olhos brilhando.

- Foi excelente. Eu vi muitas coisas interessantes, visitei muitos museus, estou deslumbrada...

- É, eu percebi - Sorriu Sarah - E mesmo assim você teve tempo para vir aqui se consultar?

Kelly parou de sorrir e recostou-se na cadeira.

- É, confesso que a minha viagem não serviu para apagar as minhas razões para vir aqui.- Suspirou - Talvez seja por essas razôes justamente que eu consegui viajar...

Sarah percebeu que ela estava hesitando em dizer suas razões de estar lá. Resolveu ajudar.

- Kelly, caso você não se sinta à vontade, não precisa me dizer no dia de hoje. Nós acabamos de nos conhecer. Hoje nós podemos conversar sobre amenidades. Por exemplo, vamos falar sobre a sua viagem. Você fez muitas compras?

Kelly sorriu.

- Fiz sim, foi muito bom ter estado lá. A senhora devia experimentar um dia fazer isso porque é muito bom...

     Sarah ficou atenta às palavras e gestos de Kelly, pensando no que a moveria a ir até ela e quais seriam as suas aflições. E algo lhe dizia que aquela paciente não passaria pelo seu consultório sem deixar nenhuma marca. Ela só esperava que a marca que ela lhe deixasse fosse agradável e lhe aliviasse do mal estar e do frio na espinha que ela estava sentindo...

...

     No outro dia de consulta, Kelly já parecia estar mais a vontade para falar sobre a razão ela estava no consultório de Sarah.

- Sabe, doutora, - Ela parecia, nervosa, não olhava nos olhos de Sarah, olhava para suas mãos, remexendo-as sem parar – Desde que eu era bem pequena, eu sempre gostei de ler – Sorriu, parecendo menos nervosa – Começou com o meu pai, ele que me incentivava – recostou-se um pouco mais no divã – Ele dava sempre livros para mim e para os meus irmãos para que nós lêssemos e depois escrevêssemos resumos sobre as histórias que nós líamos. Eu era a única que sempre lia. Meus irmãos eram muito preguiçosos...

 
     Sarah sorriu, anotando alguns detalhes em seu pequeno bloco.
 

- Isso explica porque você sabe se expressar muito bem. Você sabe muito bem como usar as palavras. E o mais interessante é que você ainda é tão...- tentou usar uma palavra apropriada – Jovem! – Essa pareceu ser a melhor.

     Kelly sorriu, um tanto desconcertada. Sabia que devia dizer alguma coisa, mas não sabia o quê. 

- Bom, eu cresci tendo os livros como meus melhores amigos e companheiros. Nunca conseguia parar de lê-los. Lia sem parar...lia até acabar...- Parecia estar divagando – Isso me deu sempre cada vez mais vontade de aprender e querer saber de tudo. Absolutamente tudo.

 
- Acho que todo mundo quer – Sarah comentou – Mas demoraria bastante tempo para descobrir, não é mesmo? E também há coisas que simplesmente não tem explicação.
 

- Até isso eu queria saber, as respostas para todas as perguntas – seu tom parecia um pouco mais sombrio – Isso começou a me causar muitas angústias – Ela colocou a mão no peito, por baixo da blusa elegante que ela vestia – Ainda existem tantas coisas pra descobrir e em tão pouco tempo...pelo menos eu acho – respirou fundo para melhorar.

  Sarah percebeu o mal estar dela, mas mesmo assim quis continuar.

   - Foi por isso que você resolveu viajar pela Europa? Para poder adquirir um pouco mais de conhecimento?

Kelly assentiu.

- E para praticar meus idiomas. Depois de fazer cursos de inglês, francês, alemão, espanhol, japonês, chinês, italiano e português de Portugal, nada melhor do que ir à Europa para poder praticar tudo que eu aprendi...- Sorriu – Melhorar a pronúncia.

  Ela sabia do espanto que suas palavras causavam. Ela sempre sabia. Mas esperou pacientemente pala reação da doutora e que ela lhe fizesse alguma pergunta, como era de costume. Seu olhar assumiu um ar cínico.

- Você de fato aprendeu todos esses idiomas?

- Tive bastante tempo pra isso.

- Não só tempo como também dinheiro.

 

- Ah não, meu pai só pagou pelos cursos de inglês e francês e alemão. O espanhol e o italiano eu aprendi por conta própria. Já o japonês e o chinês eu ganhei numa bolsa. O português de Portugal eu aprendi em casa com um vizinho meu que era português.

 Sarah estava tentando ao máximo esconder o seu espanto e se mostrar o mais profissional possível.

- Bem, - sorriu – Você não estava brincando quando disse que gosta muito de aprender – Mesmo fazendo todos esses cursos ainda sobrava tempo para seus estudos?

  Kelly hesitou um pouco antes de dizer.

- Na verdade, eu fiz esses cursos depois que terminei os estudos.

- Todos eles?

- Não. O de inglês eu fiz quando era criança, logo depois eu fiz o de francês e, como eu consegui um desconto para fazer outro idioma eu fiz o de alemão. Nesse meio tempo eu já aprendia alguma coisa com o meu vizinho português. E só depois de terminar os estudos que eu ganhei a bolsa pro chinês e japonês.

 - Ao mesmo tempo?

- Sim, e isso até facilitou as coisas. Sabe, o japonês tirava a dificuldade do chinês e vice-versa. Eu achei que ia ser difícil, mas até que não foi.

- Puxa...e só mais tarde que você estudou o espanhol e o italiano?

- É...- Kelly olhou em sua volta, escolhendo as palavras – naquela época, nós não tínhamos computador, nem Internet, era mais difícil.

Sarah achou isso estranho, as palavras daquela moça não soaram muito bem. Sentiu um arrepio. O barulho do gravador que ela usava não ajudou muito. Teve um sobressalto assim que ele apitou.

- Bem, terminamos por hoje. Nos vemos na semana que vem?

    Kelly assentiu, levantando-se.

- Com certeza.

   As duas se despediram e Sarah observou Kelly indo embora. Aquela moça não tinha a idade que ela aparentava, era bem mais velha. Não só na idade, como também na bagagem de conhecimento que ela tinha. Nenhuma pessoa que ela conhecia da sua idade sabia falar tantos idiomas. De repente, lembrou-se de uma frase que sua mãe sempre dizia de pessoas assim:

- Muito conhecimento pode ser perigoso.

     Surpreendeu-se por ter falado essa frase em voz alta. Endireitou-se e preparou-se para o próximo paciente. Sabia que aquelas palavras não iriam sair da sua cabeça, da mesma forma que a moça que saiu do seu consultório não iriam desaparecer facilmente de sua memória.   

...

- E então, Kelly? - Sarah perguntou, sorrindo de maneira simpática - Que mais dos seus vastos conheimentos você gostaria de compartilhar?

Kelly sorriu, parecia mais motivada a conversar.

- Bem, minha infância foi bem tranqüila. Mas, na época, eu não era muito bonita, nem tinha muito jeito para amizades...provavelmente foi por isso que eu me envolvi tanto com os livros.

Sarah assentiu. 

- Sei, você era meio nerd.

Kelly riu, antigamente se irritava quando ouvia isso, mas não a afetava mais.

- É, pode-se dizer que sim. Eu gostava muito de estudar, ler e os professores me amavam. O que gerava alguns conflitos...

- Brigas na escola?

- É, isso não era muito popular, mas eu não podia evitar, eu lia sempre, daí, quando os professores faziam alguma pergunta eu sempre sabia a resposta.

Sarah assentiu, fazendo algumas anotações. Levantou os olhos, olhando bem fixo no seu rosto.

- Você saberia me dizer quantos livros você já leu até agora?

Kelly surpreendeu-se com a pergunta da doutora. Olhou-a fixamente.

- Acho... que a senhora não vai querer saber a resposta para essa pergunta...nem eu mesma sei.

- Pode tentar?

Kelly suspirou antes de responder.

- Digamos que eu já li o triplo ou mais de livros do que você deve estar imaginando agora.

Sarah havia pensado num número bem alto, mas não se surpreendeu com a resposta de Kelly. 

- Sabe de uma coisa que eu gostei muito quando preenchi a sua ficha? - Kelly perguntou - A senhora não pergunta a nossa idade, nem em que ano nascemos.

Sarah concordou, as vezes os pacientes estranham isso.

- Pois é, alguns pacientes não gostam de falar sua idade, também não gostam de falar sobre coisas pessoais logo de cara. Assim, eu prefiro conhecer melhor os pacientes ao longo das nossas consultas e não através das fichas preenchidas.

Kelly sorriu. 

- Gostei disso. Sabe, doutora, acho que já estou pronta para falar mais sobre o meu problema, mas eu não gostaria de falar agora. A senhora se importa se eu for embora um pouco mais cedo hoje?

- Nenhum problema - Sarah estranhou, mas não queria prendê-la contra a vontade dela.- Conversamos na próxima sessão.

   Kelly levantou-se, despediu-se e foi embora. Sarah observou-a ir. Não queria aparentar estar ansiosa demais para saber o que lhe aguardava. O misto de medo e ansiedade penetrava no ambiente do seu consultório.

  ...

     Kelly voltou para o consultório de Sarah sentindo-se um pouco mais a vontade para conversar com ela sobre a sua situação. Mesmo assim ficou um pouco sem jeito quando olhou nos seus olhos antes de começar.

 
- A senhora já ouviu falar sobre um poema de Goethe chamado Fausto?
 
Sarah assentiu. 
 
- Ouvi falar sim. - tentou se lembrar - Parece que é a história de um homem que faz um pacto com o diabo para viver pra sempre. Acho que é mais ou menos isso...
 
Kelly confirmou.
 
- É mais ou menos assim. Esse homem servia a Deus mas foi testado por Mefistófelis, para se saber qüão fiel ele era. Assim, ele conseguiu o que ele sempre quis: Juventude eterna.
 
O jeito como Kelly falava e o brilho dos seus olhos que olhavam para o nada deixaram Sarah arrepiada e incomodada. Queria que ela fosse direto ao assunto, mas também não queria apressá-la.
 
- Ah sim. Entendi. Bom, mas o que isso tem a ver com você e a razão de você estar aqui?
 
Kelly olhou bem nos olhos de Sarah, tomando coragem antes de dizer.
 
- Acontece que eu passei pela mesma situação que Fausto. Exceto pela parte de ter feito um pacto com Diabo. Há 61 anos eu descobri o quanto que os livros são bons, contém histórias tão interessantes que eu acabei mergulhando intensamente em todas as histórias que eu lia. Daí...
 
- Há 61 anos??? - Sarah perguntou, indignada.
 
- Por favor, doutora não me interrompa. Eu preciso ir até o final, já que eu já comecei.- levantou-se- Eu descobri o quão maravilhoso é o mundo dos livros e acabei me deixando levar pelo que eu lia. Daí eu lia, eu lia, eu lia e não me dei conta do que isso tudo estava fazendo comigo, do tempo passando e eu nem sequer reparando... - olhou para a doutora, esperando que ela dissesse algo.
 
Sarah olhava para ela sem piscar, ainda tentando absolver o que acabava de ouvir.
 
- Deixa eu ver se eu entendi. - levantou-se também - Você está querendo me dizer que você tem mais de 61 anos? Mas isso é...- começou a andar pelo consultório atordoada.
 
- Eu nasci em 1927 - continuou falando, observando seguindo os passos de Sarah pela sala. - Eu fui introduzida pela leitura através do meu pai, depois eu dei continuidade por minha conta. Aparentemente o tempo parou de passar pra mim depois dos 24 anos e eu não sei exatamante porque...
 
- Ora essa! - Interrompeu Sarah, indignada -  Nem cara de 24 anos você tem - Sentou-se novamente - Eu cheguei a pensar que você era uma adolescente quando eu te conheci. Agora você vem com essa história de que você é tão mais velha!
 
Kelly olhou para ela e pegou sua bolsa.
 
- Eu imaginei que a senhora fosse duvidar do que eu te dissesse -  Abriu sua bolsa e tirou sua carteira de dentro dela - Eu vou te mostrar a minha carteira de identidade. - Tirou a carteira da bolsa, abriu-a e tirou sua carteira de identidade. Estendeu-a - Olhe a foto, faça a comparação.
 
Sarah pegou a carteira e olhou a foto. O rosto era absolutamente igual ao rosto de Kelly. Seu nome completo, sua filiação e sua assinatura. Teve medo de olhar para a data, mas não pôde evitar.
 
- 27/09/1927 - Levantou-se novamente - Mas isso quer dizer que você tem...
 
- Pode fazer as contas, doutora - Complementou Kelly - Eu tenho 85 anos. 
 
Sarah sentou-se lentamente, ainda segurando o documento de Kelly. Ainda não conseguia olhar para o rosto dela, de repente lhe pareceu perigoso. Kelly observava pacientemente a reação de Sarah, já esperava por isso. Quando finalmente conseguiu falar alguma coisa disse: 
 
- Eu preciso de um copo de água.
 
- E eu preciso de uma dose de Whisky. - replicou Kelly.
 
- Acho que eu vou lhe acompanhar. - Rendeu-se. Foi até o barzinho que havia no canto da sala, pegou dois copos, colocou a bebida neles e deu um para Kelly e sentou-se na sua poltrona, segurando o seu. Só depois de um longo gole que conseguiu falar mais:
 
- Então...- procurou as palavras - Como foi que isso aconteceu?
 
- É isso que vem me atormentando durante todos esses anos. - foi a vez de Kelly levantar - Eu sempre me perdi nos livros, era o meu refúgio. Aí, quando eu terminei a faculdade, eu entrei para um clube do livro. Cada semana um decidia que livro iríamos ler e dávamos um prazo, depois desse prazo, nós nos reuníamos e conversávamos sobre a história do livro. - sentou-se - Também tínhamos um momento do mês em que nos sentávamos e cada um falava de um livro que tinha lido antes, sua história e as nossas opiniões...
 
Sarah sorriu.
 
- Parece um bom clube.
 
- No começo sim, mas depois começou a ficar estranho... - Kelly parecia pensativa. Sarah ficou intrigada.
 
- Como assim "estranho"? O que aconteceu?
 
Kelly levantou-se mexendo as mão de maneira aflita.
 
- Eu acho melhor não entrarmos neste assunto hoje. Está sendo difícil para a senhora absorver o meu caso e eu preciso dar um espaço para a senhora. - Pegou sua bolsa. - Eu volto na semana que vem.
 
Sarah não entendeu muito bem porque Kelly fez isso. Parecia mais uma desculpa para si mesma do que para ela. Mas respeitou a decisão dela. Alguma coisa havia acontecido naquele clube e, provavelmente ela demoraria algum tempo até desabafar sobre tudo. Respeitou seu momento, por mais que estivesse curiosa e intrigada com toda essa situação. 

...

Kelly voltou para o consultório de Sarah, disposta a conversar mais sobre sua vida e como ela conseguia lidar com seu problema.

- Diga-me como conseguia despistar as pessoas quando elas lhe perguntavam sobre a sua idade?

- Na verdade, para todos os efeitos eu sempre dizia que tinha 24 anos e que não gostava muito de aniversários, por isso a medida que os anos se passavam ninguém fazia festa pra mim e as pessoas iam se esquecendo de que idade eu tinha.

- Mas isso deve ter dificultado a sua vida pessoal...Como ficaria para seus relacionamentos, sabe, namoros e coisas assim? Você conseguia fazer isso?

- Na verdade quando eu conheci o Nicolas eu ainda não estava no clube. Só entrei depois e percebi a minha... Situação depois ainda. Só que aí já era tarde, nós já estávamos casados.

- E como vocês lidaram com isso?

- Percebemos mais tarde o que estava acontecendo. Nicolas envelhecia e eu não. No começo a diferença não era tão fácil de ser percebida e conseguíamos disfarçar. Mas depois que eu tive a minha primeira filha, Ângela, ficou mais difícil. Mudamos de cidade e fingimos nossas idades. Mas depois da nossa segunda filha, Alanis, ficou ainda mais difícil. Daí mudamos novamente e fingimos que eu era filha dele e que minhas filhas eram minhas irmãs. Tentamos ficar separados, mas não conseguimos e eu acabei engravidando de novo. Mudamos novamente e aí eu tive o Alexandre.

- Puxa, quantas mudanças... quando foi que vocês pararam?

- Decidimos mudar para a Europa onde as pessoas são mais discretas e não ficavam reparando na vida dos outros. Lá criamos nossos filhos em paz. Nicolas morreu e meus filhos cresceram e trabalharam. Ângela se casou e vive na Europa. Alanis está na faculdade e Alexandre está fazendo curso técnico. Quando percebi que todos já sabiam se virar sozinhos, vi que era a minha hora de partir.

- Mas seus filhos lidaram bem com tudo isso?

- Com o tempo foi ficando mais fácil deles entenderem e o amor que eu tinha por eles era verdadeiro, de mãe. Então eu sempre conversei com eles e expliquei que em algum momento nos separaríamos e eles se conformaram. Não tinha outro jeito. Chegaria um momento que ninguém ia acreditar que eu era irmã, tia ou prima deles.

Sarah concordou.

- É, você tem razão. Mas você ainda mantém contato com eles?  

- Claro que sim. – Pegou sua bolsa – Vou te mostrar as fotos deles. - estendeu as fotos para ela. – Este era o Nicolas, e os meus filhos.

Sarah analisou as fotos. Era uma bela família. Por um momento teve pena dela. Ia ter tanto tempo de vida que chegaria a ver seus filhos e netos morrerem sem nem ao menos envelhecer. Devolveu as fotos pra ela.

- E depois do Nicolas você chegou a ter outros relacionamentos?

Kelly suspirou antes de responder.

- Na verdade eu nunca quis, mas já apareceram pessoas na minha vida. Inclusive um deles é o líder do clube do livro. Mas eu nunca quis nada com ninguém mais.

- E esse líder do clube do livro sofre do mesmo mal que você?

O olhar de Kelly se tornou sombrio.

- Na verdade, foi ele que inventou isso.

Houve um silencio na sala, quase palpável. O barulho do gravador de Sarah acabou com ele. Kelly levantou-se.

- Bem, eu já vou indo. Espero não ter te assustado muito com a minha história.

     Por mais estranho que pudesse parecer, Sarah já não se importava tanto com os calafrios que sentia quando ouvia a história de Kelly. Na verdade o que ela queria era ouvir sempre mais, cada vez mais de tudo que ela pudesse lhe passar. Estava observando-a ir embora e já estava esperando ansiosamente que ela voltasse para continuar a lhe contar sobre esse misterioso Clube do Livro.

 

...

 

- Então, Sarah, o que você achou da história que ouviu de mim na outra consulta? - Kelly perguntou, sem graça - espero não ter te assustado muito...

Sarah não quis parecer tão ansiosa para saber mais da história dela, mas conseguiu falar.

- Fale então sobre o líder do clube. Qual era o nome dele?

- William. Pelo menos era esse o nome que ele dava para si mesmo, sem sobrenomes. Ele não exigia nomes verdadeiros de nós e também não dava o nome verdadeiro dele.

Sarah não deixava de anotar.

-Era uma espécie de grupo de auto-ajuda?

Kelly concordou, receosa.

- Mais ou menos...apesar de que a ajuda que recebíamos era um tanto quanto diferente...- seu olhar sombrio havia retornado.

-Como assim? Que ajuda vocês recebiam?

Kelly hesditou um pouco antes de responder.

- Acontece que, conforme continuávamos lendo e nos expressávamos nos encontros, nossos desejos mais profundos viam à tona e, com o tempo conseguíamos... realizar esses desejos...

- Que tipo de desejos? De que natureza eles são?

O olhar de Kellyu se focou em Kelly.

- Desejos relacionados a capacidades mantais humanas. Por exemplo, muitas pessoas gostariam de conseguir voar, mas sabem que isso é humanamente impossível, mas então, elas percebem que quando estão lendo, de certa forma isso pode acontecer...

Sarah sorriu, entendendo do que Kelly estava falando.

- Sei...com as "asas da imaginação..."

- Não exatamente...- Kelly ficou tentando encontrar a melhor maneira de contar para Sarah. - O que eu quero dizer é que nesse clube nós conseguíamos superar essas "barreiras da imaginação", trazê-las do nosso imaginário para a realidade...

O espanto de Sarah ficou evidente.

- Você quer dizer...

- Isso mesmo, doutora, - Interrompeu-a Kelly - Conseguíamos adquirir poderes. Quem tinha o desejo de voar, voava, quem tinha o desejo de ser invisível, ficava invisível, quem tinha o desejo de atravesar paredes atravessava...

Sarah levantou-se devagar, tentando absorver tudo que estava ouvindo.

- Mas...como isso era possível?

- Nenhum de nós sabíamos. Perecebi isso numa das reuniões que eu fui. Eu me levantei para ir ao banheiro e vi a Raquel sentada concentrada, com a mão sobre seu braço. Vi que seu braço estava machucado e, em questão de segundos não havia mais ferida nenhuma. Se eu não tivesse visto por minha conta nem eu teria acreditado.

- Mas isso não pode ter só a ver com a leitura... senão, todos que lessem acabariam tendo poderes também...

-Pois é, como eu disse, nenhum de nós sabe exatamente como isso funciona, mas o William já nos previniu de que isso aconteceria e cada poder que nós quiséssemos ter acabaria surgindo para nós.

O olhar de Sarah não negava a pergunta que ela tanto queria fazer. Kelly estimulou-a com o olhar.

- E você, qual poder gostaria de ter?

Kelly recostou-se mais no divã.

- Telecinética. Eu queria ter o poder de fazer os objetos se moverem apenas com a minha mente.- olhou para o gravador que a doutora usava para gravar as sessões e concentrou-se. O gravador levantou-se sozinho em questão de segundos e lentamente chegou até as mãos de Sarah, que pegou-o com hesitação.- Será que eu consegui? - Kelly não conseguia deixar de sorrir.

     Sarah ficou calada por alguns segundos, sem ter palavras para expressar o choque que estava sentindo mediante o que havia acabado de ver. Kelly esperou o tempo que foi necessário. Internamente, Sarah agradeceu a Kelly por isso.

- Isto é...incrível...- suspirou, saindo do transe - como isso começou?

- Na verdade foi aos poucos. Quando eu me tornei oficialmente membro do Clube, o William me deixou bem a par de tudo que poderia acontecer e me ajudou a lidar com os poderes quando eles surgiram.

- Esse William...parece ser uma pessoa bem interessante...eu gostaria de saber mais sobre ele...

- E a senhora vai saber, doutora. Ele é o centro de tudo. - Levantou-se - Mas acho melhor deixar para continuar nosso conversa num outro dia. Melhor deixar a senhora sozinha com seus pensamentos...

     As duas se despediram e Sarah observou Kelly ir embora. Quanto daquela história era verdade ela não sabia, mas não importava mais. Tudo o que ela queria era ia a fundo nesta história de Clube do livro. Sua sede de conhecimento estava acordando e ela não queria nem sequer que ela cochilasse...  

...

     Sarah não conseguiu segurar sua ansiedade.
 
- Bem, Kelly, eu fiquei muito curiosa sobre uma pessoa específica que você me falou na outra consulta.
 
     Kelly já esperava por isso.
 
- Já até imagino quem seja. O William, não é mesmo?
 
- Isso mesmo. Como foi que vocês se conheceram?
 
- Na faculdade. Fazíamos alguns trabalhos juntos, ele sempre foi esquisito, meio sombrio. Mas ele percebia o meu hábito de leitura e apreciava bastante. Coincidentemente lemos muitos livros em comum e conversávamos bastante sobre eles. Aí, então, um belo dia ele me convidou para conhecer o clube.
 
- E como foi a sua primeira impressão sobre o Clube?
 
- Inicialmente, a impressão que me passava era apenas de um grupo pequeno de pessoas conversando sobre livros. Eu gostei muito de conhecer pessoas que tinham gosto para livros parecido com os meus. Com o tempo, percebi que eles tinham o mesmo problema que eu.
 
- Como assim?
 
- O problema de idade. Pela conversa que eles falavam, eu percebia que eles eram incrivelmente mais velhos do que aparentavam e não envelheciam, igual a mim. Dava pra perceber. E eu acho que o William percebeu isso em mim e por isso me convidou para o Clube.
 
- Então ele já sabia da sua idade?
 
- Sabia ou fazia uma idéia. Depois de um dos encontros, ele me confessou que todos os membros do grupo eram de muito mais idade. Daí eu disse a minha real idade.- Kelly sorriu- Ele nos chama de “Os privilegiados”.
 
     Sarah sorriu.
 
- Interessante. E ele deu uma explicação para isso?
 
- Nem ele sabia. Acho que foi por isso que ele nos deu esse nome. Mas ele disse que poderíamos ir muito mais além do que simplesmente envelhecermos sem aparentar.
 
- Está se referindo aos poderes?
 
- Exatamente. Ele explicou que, por termos tanto tempo de vida, podíamos expandir as nossas mentes de maneira a termos habilidades que nem todas as pessoas têm. E ele podia me ajudar a desenvolver cada vez mais essas habilidades.
 
- E como isso aconteceria?
 
- Isso dependeria do que mais desejássemos, no nosso íntimo. O que eu mais queria era a telecinésia, mover objetos com a mente.
 
- E qual era o poder que o William sempre quis ter?
 
     Kelly sorriu, recostando-se na cadeira.
 
- Ele queria ser Deus. Onipresente, onipotente e, principalmente, onisciente.
 
- E ele conseguiu? - Sarah sentia um frio na espinha.
 
     Kelly assumiu um ar sombrio.
 
- Incrivelmente, eu acho que sim, doutora. Só que eu descobri isso um pouco tarde demais.
 
- Como assim ?
 
     Kelly não sabia que palavras usar.
 
- Digamos que ele era um tanto quanto mais “privilegiado” do que os outros.- Foi o melhor que ela conseguiu dizer. 
 
- E isso representa algum problema pra você?
 
Kelly suspirou antes de responder.
 
- Acontece que, de certa forma, ele sempre aparecia nos lugares em que nós estávamos, e ele sempre adivinhava nossos pensamentos e sabia dos nossos desejos. Ele também sempre sabia onde estávamos e o que estávamos fazendo. Isso era interessante no começo, mas depois foi ficando mais estranho e nós não sabíamos mais o que fazer. Era como sde ele tivesse uma câmera que nos vigiasse 24h por dia e grampos nos nossos telefones e escutas no nosso cérebro.
 
- Então ele acabou conseguindo o que queria? Ele virou Deus?
 
- Não exatamente. Deus, como diz a bíblia, é feliz, humilde, amoroso e se compadece das pessoas. Ele não era assim. Parece que o poder todo estava lhe subindo a cabeça.
 
Sarah sorriu sombriamente.
 
- Aparentemente nem todos nós nascemos para ser Deus. Não é pra qualquer um.
 
- Nem me fale. Bom, eu já vou indo, doutora. Na próxima consulta eu lhe falo mais sobre o Clube. - Despediu-se Kelly.
 
Mas algo veio à mente de Sarah.
 
- Escute, Kelly, o que o William pensaria se soubesse que estamos fazendo essa consulta?
 
Kelly temia por essa pergunta. Mas achou que era melhor ser sincera.
 
- Eu já me consultei antes com outros psicólogos. Não foi muito bom.
 
- O que aconteceu com eles?
 
Kelly demorou um pouco para responder e evitava olhar nos olhos de Sarah. Quando finalmente olhou, acabou respondendo:
 
- A senhora não vai querer saber - E saiu do consultório, sabendo que havia deixado para trás uma psicóloga muito intrigada e um tanto quanto apavorada.

 

...

   Sarah estava se preparando para a consulta de Kelly, estava quase na hora. Ouviu umas batidas na porta. Não entendeu muito bem o porque de ela estar batendo, a recepcionista não havia interfonado e Kelly não costumava bater na porta. Deixou de especular qualquer coisa e levantou-se para atender a porta.
 
- Oi, Kelly, como vai...- foi interrompida ao abrir a porta e deparar-se com uma figura diferente na sua frente. - Mas, quem é você? - perguntou, franzindo o cenho.
 
     Um rapaz alto, moreno, de olhar sério e aparência de ser bastante jovem estava parado diante dela, os braços cruzados, olhando-a fixamente antes de dizer:
 
- Doutora Sarah Lopes? - Sua voz era grave, de quem não gostava de rodeios. No momento em que ele pronunciou aquelas palavras, Sarah percebeu que ele era bem mais velho do que aparentava e teve certeza de quem ele era. Apavorou-se.
 
- Você é o...- demorou para conseguir pronunciar o nome - William?
O rapaz aquiesceu.
 
- Eu sinto muito pela bagunça, sua recepcionista não quis me deixar entrar sem me anunciar antes.
 
     Sarah olhou a sua volta pela sala de espera e viu que sua recepcionista estava caída no chão, desacordada. Alarmou-se.
 
- Não se preocupe, doutora, ela está bem. Vai acordar daqui a pouco. - entrou logo na sua sala assim que falou isso. Sarah foi atrás dele.
 
- William, eu não sei o que você quer aqui, mas a Kelly vai chegar daqui a pouco e eu não sei se vai ser uma coisa boa ela te ver aqui...
 
- Ora, doutora, é claro que a senhora sabe porque eu estou aqui. - seu sorriso era desconcertante e arrepiante - A senhora sabe até o meu nome. Imagino o quanto mais ela deve ter te contado...
 
- Ela não me contou nada de mais, William. Ela me falou sobre a idade dela, as viagens e o Clube de vocês...- Tentou não aparentar o medo imenso que estava sentindo. - Eu achei...bem interessante...
 
- Interessante...- William começou a divagar - Doutora, a senhora sabe quanto tempo eu demorei para conseguir manter esse Clube em segredo? E sabe o quanto me custou impedir que a tagarela da Kelly espalhe  para todo o mundo sobre nós? - Aproximou-se mais dela. - Acha que eu gosto de ser aquele que fica correndo atrás de cada membro do Clube que fraqueja e acaba contando sobre nosso Clube pros outros?
 
     Antes que Sarah pudesse falar mais alguma coisa, ouviram barulho da porta. Viram Kelly  entrando na sala.
 
- Doutora, o que aconteceu com a sua recep...- Nem terminou de falar o resto da frase, porque viu William na sala e entendeu o que tinha acontecido. - O que você está fazendo aqui?
 
- O que você acha? Mais uma vez, consertando besteiras que vocês fazem.
 
- Eu agradeço, mais nós não precisamos de babá. - O tom de voz de Kelly era firme  e seu olhar era insolente, parecia uma adolescente.- Caso não tenha percebido, somos bem grandinhas. - sentou-se na cadeira - Como descobriu que eu estava aqui?
 
William sorriu rapidamente.
 
- Acho que você subestima as minhas habiliades como Deus, Kelly. 
 
- Arrogância? - Kelly falou, irônica. Olhou para Sarah. - A senhora lembra que eu disse que fiz nenhum pacto com o Diabo? Pois é...- olhou para William - acho que eu me enganei.
 
Sarah entendeu o que Kelly quis dizer. Sentou-se também.
 
  - Eu disse pra você parar de ficar se consultando com esses terapeutas...- William falava, aproximando-se de Kelly, olhando-a fixamente. - Tínhamos um acordo, você se lembra?
 
Kelly assentiu.
 
- Eu sei e cumpri esse acordo por vários anos. Mas chega uma hora em que eu não consigo mais agüentar e tenho que recorrer a alguém. Não posso contar para meus amigos porque eles vão achar que estou louca, também não posso contar pra estranhos pela mesma razão. Então, quem melhor do que uma psicóloga?
 
- O padre da paróquia? - Não parecia muito irônico, mas também não convenceu muito.
 
- Eu prefiro me consultar com uma psicóloga por causa da informalidade e da discrição.
 
- Sei, igual aquele seu outro psicólogo que quis me entrevistar, ou aquela outra psicóloga que quis te internar, ou aquele outro psicólogo que pediu dinheiro para não escrever um livro sobre nós?
 
- Eu sei de tudo isso, - olhou para Sarah - Mas ela é diferente, eu pesquisei sobre ela, sei que ela é discreta e tranqüila, e é disso que eu preciso. Acha que eu estaria me consultando novamente com uma doutora se achasse que tudo que me aconteceu antes iria se repetir?
 
     William tentou entender o que ela estava dizendo, tentou ser compreensivo.
 
- Ok, Kelly, então vamos fazer o seguinte: Eu vou deixar que esta seja sua última consulta com ela. - Aproximou seu rosto do dela, Sarah conseguia sentir a tensão sexual que existia entre eles. - Mas se eu vir que você está se consultando novamente com ela, eu juro que eu volto aqui e acabo com ela. - Foi até a porta - E eu vou fazer pior do que com os anteriores. - E saiu da sala.
     
     As duas sentiram um alívio intenso depois que ele saiu. Sentaram-se. Kelly tentou articular algumas palavras para dizer para Sarah, mas não se sentiu em condições. Tudo que conseguiu dizer foi:
 
- Sinto muito por isso, doutora. Eu não esperava que ele fosse me descobrir tão rápido.
 
     Sarah tentou sorrir, um pouco desconcertada.
 
- Pelo visto ele não vai desistir de você.
 
Kelly concordou, mas seu olhar estava angustiado.
 
- Eu sei, doutora. Eu posso sair do Clube, mas o Clube não sai de mim. Não sei mais o que fazer, apenas fugir sempre quando ele me encontra.
 
     Sarah demorou uns segundos antes de formular a pergunta que estava na sua mente, mas resolveu fazê-la mesmo assim:
 
- E então, o que vai fazer?
 
     Kelly olhou para o nada, pensativa. Depois de um tempo, resolveu responder:
 
- Acho que não tem mais jeito, vou ter que fugir mais uma vez. - Levantou-se - Eu agradeço muito pelo que a senhora fez por mim. - Abraçou-a - Eu nunca vou esquecê-la- havia lágrimas em seus olhos- Mas se eu quiser ver a senhora intacta novamente, vou precisar me afastar. E se eu quiser sair de vez do Clube eu vou ter que me afastar deles até encontrar uma solução definitiva pra isso.
 
    Sarah concordou, abraçando-a novamente.
 
- Eu sei, querida, eu sei, e eu nunca vou esquecer nem você nem a sua história. E eu quero que você saiba que eu não vou contá-la pra ninguém, ela vai ficar aqui, bem guardada comigo.
 
- Eu agradeço, doutora. Sabia que estava escolhendo bem. E saiba que vou te mandar notícias.
 
     As duas se despediram novamente e saíram da sala. Independente de qual fosse o caminho delas, elas sabiam que de nenhuma maneira, suas vidas seriam iguais. Algo muito grande ainda as unia e esse laço não seria rompido de nenhuma maneira.

...

 

      Sarah estava terminando a sua última consulta do dia. Despediu-se do seu último paciente e sua recepcionista veio falar com ela.
 
- Doutora Sarah, chegaram duas correspondências pra senhora.
 
     Sarah pegou-o e sentou-se e pegou-as, quase nunca recebia correspondências. Percebeu q uma delas era um telegrama e abriu-o. Era um cartão-postal, tinha um desenho de uma casa tipicamente oriental nele. Ficou mais curiosa ainda. Virou o cartão para ver o que estava escrito nele e quem o havia enviado.
 
                                                                                            “Olá, doutora,
     Como havia prometido, estou mandando notícias. Finalmente encontrei um lugar onde posso praticar o chinês que eu aprendi. Conheci muitas pessoas legais e nem precisei entrar para nenhum ‘Clube’ pra isso. Agradeço tudo que fez por mim, nunca vou esquecê-la. Um beijo, Kelly.”
 
     Haviam alguns símbolos chineses nos quais Sarah não fazia idéia do que significavam, mas mesmo assim, Sarah ficou muito emocionada ao lê-lo. Gostaria de poder respondê-la, mas sabia que não era o mais prudente a ser feito. 
 
- Então, doutora, boas notícias? - Aline,  a recepcionista dela lhe perguntou depois que ela leu. 
 
     Sarah pegou-se pensando. Seis meses haviam se passado desde que ela conheceu a Kelly e desde então sua vida ficou marcada por ela. Seus conhecimentos, sua postura, sua história e, principalmente, sua juventude a havia fascinado de uma maneira que ela nunca imaginava que alguém poderia. Pensou nela como se fosse uma filha, que estava viajando pelo mundo, tentando se encontrar. Ficou feliz por saber que sua filha estava bem. Virou-se para Aline, que esperava uma resposta para a sua pergunta.
 
- As melhores, Aline - Falou num tom sereno, olhando para o vazio. - As melhores.
 
- Ah, q ótimo, e o outro envelope?
     Sarah havia se esquecido, tinha outro envelope pequeno pra ela. Achou que era de Kelly também, sorriu e abriu-o. Ficou surpresa ao perceber que não o era. Era um cartão de visitas. Kelly leu o nome do cartão em voz alta: Clube do Livro. A legenda abaixo dizia: junte-se a nós. Junto com o cartão havia um bilhete curto, escrito à mão.
 
"Percebi o brilho nos seus olhos ao ouvir falar sobre o Clube, sei que você quer saber mais sobre nós. Tem minha permissão para vir nos conhecer. Quem sabe esse não é o seu lugar."
                                                                                  W.
 
     Sarah não conseguia acreditar nas palavras que havia acabado de ler. Como ele podia ter percebido isso? Ele realmente deve ter virado Deus. Apesar da curiosidade intensa que sentia e o fascínio que toda aquela história contada por Kelly tenha lhe causado, Sarah sabia que conhecer o Clube não seria a melhor decisão. Mesmo assim, achou por bem guardar o bilhete na sua gaveta. Sentia que aquela podia ser uma boa lembrança referente à tudo que aconteceu. 
 

 
   Sarah nunca mais ouviu falar do Clube ou do William, parece que sumiram do mapa e ela ficou feliz por isso. Aquele jeito sinistro do Líder do Clube a arrepiava mesmo quando ela só pensava nele. Em determinados momentos, ela se sentia tentada a falar com alguém sobre o que aconteceu, mas sabia das conseqüências dessa atitude sobre a sua própria vida. Perdeu as contas de quantas vezes começou a escrever um e-mail anônimo para alguns sites referentes a “fenômenos estranhos”, mas nunca conseguiu enviar. Ironicamente, pensou em se consultar com um psicólogo, mas sabia que isso podia não dar certo.  Quem sabe um dia, no seu leito de morte, ela escreveria uma carta contando tudo, mas só porque não teria nada a perder. No momento ela não faria nada. Apenas lembraria de Kelly com carinho e do William com inquietação. 
 
     Saiu do seu devaneio e levantou-se para terminar de guardar as suas coisas para ir embora do consultório. As suas vidas continuariam, mesmo que estivessem separadas, esperando para se encontrarem algum dia. Guardou o cartão dentro da sua agenda e do seu coração e seguiu em frente. Ultimamente pegou-se querendo ler poemas de Goethe, principalmente de  Fausto, e lembrou-se de um trecho bem interessante:
 
                                                 
 
                                             “Não és mais, meu senhor, do que és: um mortal!
                                                   Perucas podes ter, com louros aos milhões. 
                                                   Alçar-te com teus pés nos mais altos tacões, 
                                                   Serás sempre o que és: um pobre ser mortal!”
 
    

      Perguntou-se se aquele poema se aplicava a todas as pessoas, mas de uma coisa Sarah podia ter certeza: Goethe não conheceu Kelly. Sorriu ao pensar nisso. Fechou seu consultório e voltou parta casa, para sua vida e seus livros, seus verdadeiros amigos. Ainda tinha muita coisa em que pensar para os anos que vinham à frente.